Paróquia Cristo Rei

Arquidioce de Campinas

Padre Lívio Gabrielli

placeholder-imagem
Primeiro Pároco da Igreja de Cristo Rei
23 de setembro de 1973

Texto do discurso do Dr. Fernando Panattoni,
proferido por ocasião do descerramento da placa alusiva ao Pe. Lívio Gabrielli,
um ano após seu falecimento.

“Esta placa encerra uma história, história que sucintamente passo a narrar-vos. Certo dia, no norte da Itália, um jovem recebeu o chamado de Deus e atendeu-o.

Ingressou no seminário e, dentre muitos dos chamados, foi um dos poucos escolhidos, sendo ordenado sacerdote, da Ordem dos Missionários de Nossa Senhora da Consolata.

Entregando toda a sua vida a Deus e à Santa Madre Igreja, foi promovendo verdadeira semeadura, até que sobreveio a II Guerra Mundial, com seu horrores, perdurando desde 1939 até 1945.

Dentre as potências que constituíram o chamado Eixo, encontrava-se a Itália e, como todos vós sabeis, a Igreja procura estar sempre junto das almas, para conduzí-las à eternidade, de tal sorte que, em ocasiões de guerra, são destacados capelães, para acompanharem as tropas militares e prestarem assistência aos combatentes.

Esse jovem sacerdote foi assim designado e, antes de partir, procurou avistar-se com Sua Santidade o Papa, para receber-lhe a bênção.

Na época, o Pontificado tinha como titular Pio XII, o célebre e santo Eugenio Pacelli, também italiano, nascido na própria Roma.

Sem ao menos saber com faria para chegar até o Sumo Pontífice, o jovem padre foi ao Vaticano e, nas escadarias, acidentalmente avistou um  monsenhor, da sua ordem sacerdotal, a quem disse a sua pretensão. Coincidentemente, tratava-se de um dos secretários do Pio XII, hoje São Pio XII.

Conduzido à sua presença, de joelhos recebeu uma bênção especial e , após, arriscou uma pergunta: “Santidade, eu volto?”

Sim, porque a partida para o campo de batalha encerrava sempre uma incógnita em relação à volta. Muitos, como antecipadamente se sabia, jamais voltariam. A morte era quase uma certeza.

Pio XII, com seu semblante sereno e santo, fechou os olhos, permaneceu silente por algum tempo e, a seguir, tocando com as mãos a cabeça do jovem padre, disse-lhe com toda segurança: “Você voltará, meu filho”. E assim abençoado, o novel capelão rumou para o campo de batalha, onde presenciou e sofreu grandes crueldades. A morte rondou-o inúmeras vezes, sem que, contudo, o alcançasse.

Certa feita, encontrando-se em um imóvel, ao dirigir-se para o café  da manhã, no andar superior, sentiu que uma força estranha o impelia para fora. Algo lhe dizia, “vai embora, vai embora”. Sem saber explicar como e porque, deixou tudo e foi para a parte externa, onde havia uma pequena trilha de terra batida, na qual viu uma bicicleta abandonada. Tomou-a, passou a pedalar quando surgiram aviões das forças contrárias e bombardearam o local. Somente ele sobreviveu.

Muitas outras ocasiões de perigo foram vividas e por ele diversas vezes narradas, sem que a morte o arrebanhasse. Eram “coincidências divinas”, como assim ele as denominava.

Porém, as maiores agruras, foram vividas em campos de concentração, nos quais permaneceu preso durante muito tempo. Neles, comeu o que nos dá nojo somente ao olhar, para poder sobreviver.

Até  que, finda a guerra, ao retornar para a Itália, então quase arrasada, recebeu a incumbência de vir para o Brasil, para aqui dar prosseguimento à sua labuta.

Neste local, onde agora nos encontramos, havia tão somente um terreno baldio.

Vindo do vizinho distrito de Barão Geraldo, o intrépido sacerdote, que não teve receio sequer de uma guerra, não receou também a nova faina que o aguardava, de erguer no que era então apenas solo nu, um novo templo de Deus e da Sua Igreja.

Empreendeu com denodo a outra luta e dela se saiu vitorioso, conseguindo erguer esta casa de Cristo Rei, que não é nenhum palácio, à altura do seu Real Soberano, Ele que é Rei dos Reis, mas que nos abriga muito bem, nos momentos de encontro com Aquele que enxergamos não apenas como nosso Rei, mas como nosso Rei e nosso Pai.

Dispensando um tratamento sério às coisas de Deus e da Igreja, exigente no estrito cumprimento das normas canônicas, foi muitas vezes incompreendido, por todos nós; todos, sem exceção alguma.

Porém, compreendendo o passado de traumas e amarguras por ele vivido, principalmente durante a II Guerra Mundial, muitos passaram a entender sua maneira um tanto severa de agir, tornando-se dele verdadeiros amigos.

Todos porém, são unânimes em reconhecer seu grande valor, sua dedicação contínua e incansável, à sua Paróquia e ao Carmelo, onde celebrava diariamente o Santo Sacrifício da Missa, aqui no período noturno e lá, no matutino.

Dono de invejável cultura, dominando cinco idiomas – italiano, francês, inglês, português e alemão – e com seguros conhecimentos de latim e grego, procurava em seus sermões, tornar-se acessível a todos, desenvolvendo um esforço contrário ao aperfeiçoamento que se deve buscar, para que tivéssemos a compreensão de suas mensagens, sempre enriquecidas por narrativas edificantes, máxima da vida de santos, que serviam de exemplos magnânimos para todos quantos o ouviam.

Lembro-me bem, que gostava de citar São Maximiliano Kolbe, que preso em campo de concentração, ofereceu-se para ser morto no lugar de um chefe de família, sob a alegação de que este faria uma falta muito maior, porque tinha mulher e filhos para cuidar. Morreu e foi canonizado, depois de fornecer essa enorme prova de amor ao próximo.

E o sacerdote de quem vos falo, sempre enfatizava, que não existe maior prova de amor, do que aquela que consiste em dar a própria vida por quem se ama, como fez Nosso Senhor Jesus Cristo, no Calvário, por nós.

Pois bem, esse sacerdote, vós o sabeis, foi o Padre Lívio Gabrielli, nosso primeiro pároco, o artífice da construção da nossa Igreja, que é  a Igreja de Cristo Rei.

Muitas vezes não o compreendi. Inúmeras vezes divergi dele. Até que, depois de algum tempo, passei a compreendê-lo melhor e dele, juntamente com toda a minha família, tornei-me um grande amigo, assim como muitos dos seus paroquianos também o fizeram.

Todavia, por mais que dele divergíssemos, por mais que não aceitássemos algumas de suas determinações, sempre sobrava, no âmago de uma análise séria e isenta, o reconhecimento pela sua dedicação, pela sua perseverança, pela sua coerência e, sobretudo pelo seu grande e profícuo trabalho, inclusive material.

Para os que não sabem, convém lembrar que até o sistema de eletricidade da Igreja, por ele foi feito, até que um dia, caiu de uma escada, fraturou uma das pernas e caminhou trôpego, até o final de sua vida, esse mesmo final, que acompanhei de perto e posso assegurar-vos: foi a morte de um santo.

Na noite anterior, suportou dores atrozes, expelindo sangue. Simplesmente para não me incomodar, deixou de telefonar-me, somente o fazendo ao clarear do dia. Entristecido, levei-o então ao hospital e, depois de devidamente atendido e acomodado, lá o deixei. Cerca de duas horas após, para grande surpresa, recebi o comunicado de seu falecimento.

E sabeis como faleceu?

Simplesmente cerrando os olhos, silente, com toda serenidade. Com a serenidade de quem viveu para Deus e para o próximo, merecendo ganhar a vida eterna, como nos parece e, certamente, deve ter parecido também ao nosso Pai celestial.

Foi toda uma vida consagrada a Deus, uma prova de amor maior, dirigido sempre ao Criador e às criaturas.

Dele, fica gravada no átrio da sua Igreja, esta lembrança, em nossos corações, em nossas almas, o exemplo edificante que dele recebemos.

Compete a nós prosseguir a sua obra.

Para a nossa felicidade, tivemos em seguida conosco, embora temporariamente, o Padre Guedes, que em curto espaço de tempo nos cativou e a seguir, agora em caráter definitivo, o Padre Wilson Denadai, que tem se mostrado outro operoso sacerdote, sempre disposto a ouvir-nos e a aconselhar-nos, agora empenhado na reforma do salão paroquial.

Depois, outras lutas necessariamente virão.

O forro da nave da Igreja deverá ser feito. A própria imagem que encima o altar, não é a característica de Cristo Rei, mas sim a do Sagrado Coração de Jesus.

Ainda há muito por fazer. Mas, com o Padre Wilson à frente, tudo será feito, estou certo, ao seu tempo.

É o propósito que deverá animar-nos, a todos quanto aqui estamos e aos que por qualquer motivo não puderam comparecer, como é o caso do nosso Arcebispo, Dom Gilberto Pereira Lopes, que, todavia, está presente em espírito, o que, como já dizia Ruy, significa estar presente em verdade.

Que o descerramento desta placa sirva, para nós, de recordação da história que ela simboliza, de elemento motivador para o prosseguimento em nossa luta diária, sempre por amor a Deus, a Ele oferecendo cada minuto de cada dia, cada tarefa por simples que possa ser e, principalmente, que sirva de recordação do exemplo que ficou, de uma vida digna, reta, honrada e devotada ao Senhor e à sua Santa Igreja.

Sim, porque é bem certo que as palavras comovem, mas os exemplos arrastam!”